A Justificação em Tomás de Aquino.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A justificação sempre foi um tema muito importante na teologia, mas nem sempre uma questão muito discutida. Quando olhamos para a patrística, parece-nos haver um certo consenso, porém nunca foi um assunto tão destrinchado como a Santíssima Trindade e a natureza de Cristo – por motivos de necessidade. Por isso, o grande momento da discussão começa com Tomás de Aquino e se intensifica na reforma e contrarreforma.

Com esse panorama histórico em vista, acaba por ser obrigatório para todo aquele que deseja se aprofundar no assunto, estudar a posição do Doctor Angelicus. Por mais que discordemos ou concordemos com o autor, é necessário conhecermos sua teologia, pois ela se colocou como um divisor de águas. Portanto, não é saudável que olhemos para a justificação sem considerar a Suma Teológica.

Então, esta será a matéria prima deste texto, que olhará para a questão 113 da segunda parte da Suma teológica no tratado da graça. Aqui, discorrerei acompanhando os artigos dentro da questão, comentando-os e citando quando necessário. Assim, poderemos adentrar no assunto seguindo a lógica de Tomás de Aquino.

Comecemos com o primeiro artigo, que em resumo nos dirá que: a justificação do ímpio é uma disposição interna do homem em submeter a sua faculdade suprema (a razão, com as faculdades inferiores submetidas à ela) a Deus. Com isso, coloca todo o seu ser em ordem, já que isto é a justiça, a retidão plena. Dessa forma, o homem experimenta um movimento de afastar-se da injustiça e aproximar-se da justiça, pela remissão dos pecados.

Neste primeiro artigo, Tomás de Aquino nos esclarece sua definição de justificação. Ele nos apresenta um movimento do homem de distanciar-se da injustiça e aproximar- se da justiça, que culmina na remissão dos pecados; mas ainda é acrescentada uma questão prática, a submissão das faculdades inferiores à razão, e da mesma submissa a Deus. Portanto, na teologia do Doctor Angelicus, a justificação é um movimento duplo, de distância e proximidade, que engloba a submissão da razão e a remissão dos pecados.

Agora, quando olhamos para o segundo artigo, o autor nos esclarece sobre a remissão dos pecados na justificação. Já que, para a remissão dos pecados se faz necessária a graça, pois, sem ela não poderíamos sair do estado de culpa. Porque sabemos que o homem depois que cai do estado de inocência, só pode estar em estado de culpa ou estado de graça, não havendo um meio termo, e para sairmos do estado de culpa é necessária a graça. Assim sendo, o homem para ser justificado é dependente da ação da graça nele, para remir seus pecados.

Portanto, se estabelece no segundo ponto que o movimento realizado pelo homem de afastar-se da injustiça e aproximar-se da justiça tem como necessidade a graça. Ou seja, o fato de a justificação ser a remissão dos pecados implica na necessidade da graça para o processo; porque a remissão dos pecados não pode acontecer sem a graça. Então, para o autor não haveria possibilidade da justificação ocorrer sem a graça agindo ativamente no homem.

E quando olhamos para o terceiro artigo, algo muito importante é introduzido na questão: a natureza humana, que implica no livre-arbítrio. Porque, se a justificação do ímpio é o movimento de saída do estado de culpa para o estado de graça, esse movimento acontece de acordo com a natureza do Homem, o que implica no livre-arbítrio. Pois, Deus move todos os seres de acordo com suas naturezas, assim, quando o homem saí do estado de culpa para o estado de graça o faz com a moção do livre-arbítrio, sendo este movido por Deus.

Mas, nos dias de hoje, a palavra livre-arbítrio assumiu conotações diferentes da utilizada por Tomás de Aquino. Atualmente, entende-se essa expressão como uma completa autonomia do Homem, algo que somente Deus teria, uma liberdade plena. Porém, o autor entende-a como uma capacidade humana, que partindo da reflexão racional escolhe entre “A” ou “B”; observando que essa escolha está dentro da providência divina, o que fica claro quando o teólogo dominicano diz que este livre-arbítrio precisa ser movido pela graça. Pois, essa capacidade de decisão, baseada na razão, será movida pelo pecado, quando o homem estiver no estado de culpa; ou pela graça, quando ele estiver em estado de graça.

No quarto artigo, temos afirmações fulcrais para o entendimento desta teologia, como: Deus move o homem da injustiça (estado de culpa) para a justiça (estado de graça). E neste ato Ele move o livre-arbítrio do homem, operando assim a justificação que é a remissão dos pecados. Mas, neste processo o homem converte-se a Deus, o que só pode acontecer pela fé. Contudo, este ato de fé (crença nos artigos da fé, que são vividos na caridade) precisa ser acompanhado de outras virtudes, que estão submetidas à razão e englobadas no livre-arbítrio.

Sendo assim, diferente dos reformadores, ele inclui na justificação as ações do livre-arbítrio humano (que é guiado por Deus). Porque, para o monge dominicano, no movimento de saída da injustiça e ida para a justiça está presente a submissão das faculdades à razão, e desta a Deus; com isso, a fé, o amor, a esperança e outras virtudes são necessárias para que homem seja justificado. Então, vemos que o autor enxerga a justificação como um ato sinérgico (por mais que movido por Deus), onde o objeto móvel precisa, através de seu arbítrio, agir de acordo com aquilo que o move.

Ao lermos o quinto artigo, nos deparamos com uma doutrina muito interessante: a justificação é a moção da alma humana do estado de pecado para o estado de graça. Sendo assim, uma alma justificada tem em seu livre-arbítrio uma dupla moção, o afastamento do pecado e a aproximação da graça. O que em termos anímicos, significam: desejar (aproximar) e detestar (afastar). Ou seja, uma alma justificada tem duplo movimento do seu livre-arbítrio (movido por Deus): o de desejar a graça e o de detestar o pecado.

Aqui, mais uma vez, observa-se o conceito sinérgico de Tomás de Aquino. Pois o teólogo medieval deixa claro que o homem precisa amar a graça e odiar o pecado, contudo a teologia reformada enxerga isto como uma reação da justificação e não como uma ação humana durante a justificação. Portanto, nesse movimento (movido por Deus) da alma humana de distanciar-se da culpa e aproximar-se da graça, ele passará a odiar o objeto do qual está se afastando e amar aquele que está se aproximando.

No sexto artigo, o autor afirmará qual a finalidade da justificação: a remissão dos pecados do ímpio. No processo de moção da alma do homem do estado de culpa para o estado de graça, feita por Deus, quatro condições são exigidas. São elas: a infusão da graça; a moção do livre-arbítrio para Deus, por meio da fé; a moção do livre-arbítrio contra o pecado e a remissão da culpa. Pois, qualquer moção em que um ser move outro requer três condições: primeiro, a moção do motor; segundo, o movimento do móvel; terceira, a consumação do movimento. Sendo assim, a moção divina (do motor) é a graça de Deus, a moção do livre-arbítrio (do móvel) é dupla (afastamento do pecado e aproximação da graça) e a consumação do movimento, i.e., o seu fim, é a remissão dos pecados.

Portanto, Tomás de Aquino destaca claramente a participação do homem em sua justificação, por mais que Deus seja o seu motor. Porque, ele precisa reagir a este impulso com a fé e outras virtudes, e também submetendo as faculdades inferiores à razão e esta a Deus. Para que assim, o ímpio possa desfrutar da remissão dos pecados, e agora ser considerado pio.

O artigo de número 7, mostra que toda a justificação é baseada na graça, a qual move o livre-arbítrio e perdoa a culpa. O que ocorre instantaneamente. Porque, para que um objeto receba algo que não lhe pertence (como a justiça ao homem em estado de culpa) ele precisa ser colocado em disposição pelo agente. E isso só é progressivo quando existe algum tipo de resistência do objeto para com o agente, o que não ocorre com Deus por ter uma virtude infinita. Portanto, a justificação do ímpio é operada por Deus instantaneamente.

Neste artigo, o escritor da Suma Teológica finca sua posição de que a base da justificação é a graça, que nos move e no fim perdoa nossos pecados; mas a implicação disso será muito importante, pois precisaremos afirmar que por isso a mesma é instantânea. Porque, se a graça provém de Deus, e um objeto só se moveria de maneira progressiva caso houvesse alguma resistência, é necessário dizermos que a justificação é imediata, já que nada pode oferecer resistência a Deus.

No oitavo artigo, Tomás de Aquino esclarece o ponto anterior da seguinte maneira: a justificação ocorre de forma simultânea, mas na ordem da natureza, uma é anterior a outra. A primeira, por ser a causa de tudo, é a infusão da graça; a segunda, é a moção do livre-arbítrio para Deus; a terceira, a moção do livre-arbítrio contra o pecado e a última é a remissão da culpa. Isso se dá pelo motivo de que em qualquer movimento temos a seguinte ordem natural: primeiro vem a moção do motor (infusão da graça), em segundo a disposição da matéria ou o movimento do móvel (moção do livre-arbítrio para Deus e contra o pecado) e por último o fim do movimento (a remissão da culpa).

Ou seja, o que temos aqui é a posição de que para nós, seres que não têm acesso (ainda) a eternidade, a justificação não é instantânea na ordem natural. Porque, no tempo humano, primeiro recebemos a graça; depois reagimos à ela, amando-a e submetendo as faculdades inferiores à faculdade suprema e esta a Deus; após isto, passamos a repudiar o pecado e agir de maneira contrária ao mesmo; e só depois somos remidos dos nossos pecados pela graça. Portanto, a remissão dos pecados é a conclusão – consumação – de todo este processo.

No nono artigo, o Doctor Angelicus defenderá a tese de que esta (a justificação) é a maior obra de Deus, e utilizará uma frase de Santo Agostinho: “maior obra é fazer do ímpio um justo, do que criar o céu e a terra”. Mas alguns poderiam dizer que criar algo do nada seria maior do que criar algo de uma coisa já existente; e por isso a criação seria uma obra maior do que a justificação. Mas em contrário, Agostinho continuou: “o céu e a terra passarão; porém a salvação e a justificação dos predestinados permanecerão”. Dizemos, portanto, que a justificação é a maior obra de Deus, assim como, dizemos que um monte é pequeno e um grão de milho é grande, ou seja, por grandeza proporcional.

Este talvez seja um dos pontos que menos receberá atenção do leitor, por parecer um ponto pacífico e que não exige polêmica ou pensamentos muito complexos. Contudo, entendermos que a justificação do ímpio se apresenta como a maior obra de Deus, é central para que possamos ter a plena compreensão da grandeza daquilo que a Santíssima Trindade fez por nós. Porque, se não captarmos a imensidão da misericórdia e da graça derramadas em nossas vidas não as amaremos justamente, o que obviamente seria pecado. Portanto, não passemos tão rapidamente por este ponto, mas que possamos refletir na infinitude do Santo Sacrifício do Deus-Homem na cruz.

No décimo e último artigo, observamos uma compreensão distinta daquela que os reformados em geral, influenciados principalmente por Calvino, carregam. Pois, Santo Tomás argumenta que a alma é naturalmente capaz da graça. Sendo assim, diferente dos calvinistas, o Doutor Angélico, não crê que nossas potências foram corrompidas pela queda, mas apenas nossos atos são tendenciosos para o erro. E por isso, a justificação não seria uma obra milagrosa, que por conceito é um ato de Deus superior à natureza do objeto; como a cura de um cego ou a ressureição de um morto.

Deixo aqui uma citação do próprio autor para que fique mais claro: “Não há milagre sempre que um ser natural se move, contra a sua inclinação; do contrário, seria milagre o aquecer-se a água ou uma pedra ser atirada para cima. Milagre há quando um efeito se realiza, contra a ordem regular da causa própria, que, por natureza, o produz. Ora, nenhuma outra causa há da justificação do ímpio, senão Deus, assim como só o fogo é a causa do aquecimento da água. Portanto, a esta luz, a justificação do ímpio não é milagrosa.” E acrescentei também neste texto uma outra citação do teólogo dominicano citando Agostinho: “As obras milagrosas são superiores ao poder natural. Ora, justificação do ímpio não o é, pois, diz Agostinho: O homem, por natureza, pode ter tanto a fé como a caridade; mas os fiéis, pela graça, é que tem a fé, como a caridade. Logo, a justificação do ímpio não é milagrosa.”

À luz destes dois trechos fica clara a posição de Santo Tomás. A graça dá para o homem uma capacitação, mas pela natureza própria dele, ele a recebe; e a partir deste ponto começa a reagir também segundo sua natureza. Por isso, a justificação, para o monge medieval, não é milagrosa, pois, agir contra uma inclinação natural não é um milagre.

Então, após uma breve análise de todos estes artigos, podemos concluir.

Tomás de Aquino foi um homem brilhante, extremamente piedoso e devoto; em nenhuma de suas biografias encontramos falhas graves, pelo contrário, sempre foi um cristão exemplar. E por este motivo, é muito benéfico que um cristão conheça sua obra, ou pelo menos os pontos mais centrais, para que possa absorver e aprender um pouco com este doutor da Igreja, que não somente a amou imensamente, mas também contribuiu de maneira maravilhosa para o avanço teológico e espiritual da mesma. Portanto, que possamos nos aprofundar cada vez mais na vida e obra deste personagem que tanto tem para nos oferecer.

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