Cristianismo e Platonismo
Os pontos de contato entre Cristianismo e Platonismo.
Resumo
Procura entender se de fato existe uma conexão entre Cristianismo e Platonismo, e até que nível essa concordância se estende. Para isso, uma pesquisa atenta em escritos de grandes nomes da Patrística como Orígenes (185-253D.C.), Clemente (150-217D.C.) e Agostinho (354-430D.C.) foi necessária, como também o auxílio de nomes importantes da historiografia, como Giovanni Reale (1931-2014D.C.), da mesma maneira o uso de teólogos modernos, medievais e da Bíblia foi crucial. E após essa breve investigação, pode-se perceber um princípio de dialogo próximo entre os dois sistemas, que se perpetua em doutrinas cristãs até os dias de hoje. Muitos dos chamados “Pais da Igreja”, foram alunos em escolas platônicas e/ou neoplatônicas, como os já supracitados. E no intuito de demonstrar, com clareza, o diálogo entre as duas doutrinas, serão apontadas citações de grandes nomes do Cristianismo seguidas de comentários esclarecendo os pontos de contato.
Palavras-chave: Cristianismo. Filosofia. Platonismo. Teologia.
Introdução: O trabalho irá apresentar ideias consoantes entre dois sistemas de pensamento basilares do ocidente: o Cristianismo e o Platonismo. Numa abordagem conciliatória, e que objetiva entender se de fato existe uma conexão entre essas doutrinas, recorrendo à matérias físicos e digitais que contenham escritos – da patrística, e de historiadores robustos – que sejam relevantes para o alvo desta pesquisa. Será mesmo que entre Cristianismo e Platonismo existem pontos de contato? Há de fato um diálogo entre as partes?
O tema é de extrema importância para os cristãos, pois lida com conceitos nucleares da fé. Ideias como: antropologia e escatologia são pilares centrais para qualquer cristão.
Neste momento de prolegômenos é necessário que três pontos sejam esclarecidos: 1) Não me coloco aqui como julgador de ideias. Dessa forma não apresentarei juízo das doutrinas expostas neste texto, pois isso confrontaria o propósito do trabalho. O objetivo não é dissertar sobre qual pensamento tem mais solidez em um sistema bíblico-cristão, mas apenas expor os pontos de contato entre Cristianismo e Platonismo que foram encontrados na pesquisa. 2) É necessário elucidar também que utilizo o vocábulo “Cristianismo” de uma maneira ecumênica. Não dando ênfase para os diferentes entendimentos encontrados nas ramificações cristãs, mas sim buscando uma generalização da fé. Considerando como “Cristianismo” as doutrinas mais antigas e aceitas pela maioria das denominações, como por exemplo: a visão antropológica dualista (corpo e alma) que vemos na teologia católica, reformada, luterana, anglicana e de muitas igrejas independentes; e que também tem respaldo em toda história da Igreja. 3) E por último se faz fundamental a elucidação do termo “Platonismo” empregado no texto, que será utilizado de acordo com as definições de dois materiais: a “Enciclopédia de Bíblia, Teologia & Filosofia” de R.N. Champlin Ph.D., e o dicionário de língua portuguesa “Houaiss”, 2001.
A hipótese defendia neste trabalho é de que existe sim uma relação próxima entre as duas doutrinas, e que esse diálogo produziu entendimentos importantes para o Cristianismo. O tema se faz crucial, pois rastrear a origem das ideias é crítico para qualquer erudito. Saber como se deu o processo de construção do sistema cristão, e compreendê-lo, é elementar para todo que almeja a intelectualidade cristã.
Corpo
Tendo em vista agora um alvo claro e comum, e com a expectativa e a entrega minimamente alinhadas, podemos então observar o primeiro ponto de contato entre Cristianismo e Platonismo:
- A alma é a fonte do corpo.
Com relação à castidade, se uma pessoa muito honrada apresenta-se a ti e pede que mintas, para com essa mentira livrar-se de um violador, sem dúvida deverias mentir? É fácil responder a essa pergunta: a pureza do corpo depende da integridade da alma e esta, quando rompida, necessariamente decai, embora a primeira possa parecer íntegra. De fato, a castidade não pode ser considerada do mesmo modo que as coisas temporais – como se pudesse ser tirada de nós contra a nossa vontade. Logo, a alma de forma nenhuma deve se corromper pela mentira para beneficiar o corpo, pois a alma sabe que o corpo permanecerá incorrupto se não for corrompido por ela. (Santo Agostinho, 2018, página 25)
No “Sobre a mentira”, Santo Agostinho – o provável maior doutor da patrística – escreve um livreto com o intuito de desmontar as argumentações que relativizaram o mandamento que proibia a mentira. Na sua exposição brilhante e bastante fluída, como de costume, ele vai escalando desde mentiras pueris até aquelas que poderiam salvar a vida de outrem, ou mesmo livrá-la de uma violência sexual, como é o caso do trecho selecionado para este trabalho.
Contudo, para os propósitos desta pesquisa precisamos nos atentar à algo que o profícuo teólogo aponta. A alma é o núcleo do homem, sua essência, seu verdadeiro eu. Podemos, mesmo em uma leitura relaxada, perceber nítidas semelhanças com o Platonismo.
Assim como o bispo de Hipona, Platão(428-347A.C.) acreditava que o corpo é uma mera imitação – mimeses – da alma, assim como todo o mundo sensível apenas representa, como sombras, o mundo verdadeiro, ideal e perfeito. Ponto que voltaremos a comentar mais à frente.
O primeiro ponto de contato que podemos observar entre o Cristianismo e o Platonismo é a visão de que a alma é a fonte do corpo. Que na parte imaterial do homem se encontra sua substância, seu verdadeiro eu. Entretanto, é preciso esclarecer que este entendimento em comum é apenas inicial. Ambos os sistemas desenvolveram o pressuposto de maneiras diferentes. Platão, por exemplo, chegou a conclusão de que: as almas por algum tipo de corrupção interna se interessaram por esse mundo material. Sendo assim, ela agora só poderia voltar ao seu estágio original, através de um progresso espiritual e moral. (R.N. Champlin, 2014)
Mais uma vez, podemos ver vestígios de semelhanças com o Cristianismo. Que também alega a ideia de uma corrupção da alma, e que ela está em uma busca incessante por aquele momento harmonioso primário. Todavia, para os cristãos essa purificação se dá por meio do sacrifício de Jesus Cristo, um ponto que marca com veemência a distância entre cristãos e platônicos.
- Uma dimensão superior.
No evangelho de João temos uma frase de Jesus Cristo que é fulcral para este ponto: “Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui.” (Evangelho de São João 18:36, Almeida Revista e Atualizada). Aqui vemos uma proximidade de ideias entre o Cristianismo e o Platonismo. O pensamento de que existe um mundo além desse, que é o Reino do Bem, que não tem corrupção, um lugar superior, uma dimensão perfeita.
A diferença, mais uma vez, ocorre no desenvolver do pressuposto. Para os platônicos esse mundo superior, seria a realidade imaterial das ideias; já para os cristãos, esse lugar perfeito é o Céu, a morada da Santíssima Trindade, a Cidade Celestial que todo salvo irá após sua morte para desfrutar da presença do Deus-trino.
Outro ponto de discordância contundente, é o fato de que no Cristianismo somente os remidos pelo sangue de seu Salvador habitarão neste Reino perfeito. Já na filosofia platônica, a união das almas com o mundo das ideias é o curso natural depois da morte.
- Uma visão antropológica dualista.
Com efeito, sendo os seres vivos realidades naturais, são compostos de matéria e forma. Ora, eles se compõem de corpo e alma, que os tornam viventes em ato. Por isso, é necessário que um deles seja forma e o outro, matéria. Ora, o corpo não pode ser forma, porque ele não está em outra coisa como em matéria e em sujeito. Consequentemente, a alma é forma. Logo, ela não é corpo, porque nenhum corpo é forma. (Santo Tomás de Aquino, 2017, página 274)
Neste trecho da “Suma Teológica” este que é um dos maiores nomes do período medieval cristão, é transparentissísimo ao falar da constituição do ser, mostrando a visão antropológica dualista do Cristianismo. Pensamento que também se encontra no Platonismo, pois para este sistema a alma é nativa do mundo das ideias, uma fagulha do Eterno, mas acabou por ser aprisionada no corpo.
Para cristãos e platônicos, o homem é constituído por uma parte imaterial (a fonte do seu ser) e uma outra corpórea. Em ambas as doutrinas, este conceito antropológico dualista é lecionado. Dessa maneira forma-se aqui mais um ponto de contato extremamente sólido entre Cristianismo e Platonismo.
4. O Logos Criador
Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem. (Hebreus 11:3 Almeida Revista e Atualizada)
O princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. (Evangelho de São João 1:1-4 Almeida Revista e Atualizada)
Em ambos os Textos Canônicos podemos observar com clareza uma das doutrinas mais impactantes do Cristianismo: o Logos Criador. A ideia de um ser celestial que cria todas as coisas era comum entre os povos daquela época, contudo nenhuma religião se aproximava da visão judaica, e posteriormente refinada cristã, do criar pelo falar. Não há uma expressão em nosso idioma vernáculo que consiga traduzir com precisão o significado de Logos para a filosofia platônica, talvez Verbo seja a melhor opção, mas mesmo assim cria uma defasagem no entendimento das palavras do Santo Apóstolo. Sendo assim, é necessário que seja apresentada uma breve explicação do que é o Logos dentro da doutrina cristã.
Quando pensamos em Logos dentro do sistema de pensamento cristão percebemos que Ele é um conceito chave para São João e os apóstolos. Jesus Cristo é a encarnação da perfeição, aquilo que Platão sempre buscou encontrar. A ideia da Justiça como um ser foi inaugurada na filosofia pelos platônicos (algo que depois o Cristianismo iria amadurecer com a vinda de seu Salvador), este foi um pressuposto muito importante, para que as pessoas da época do Nazareno já tivessem algum conhecimento prévio do que Ele queria dizer quando falava: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. O Logos é a perfeita harmonia entre os três transcendentais, a saber: o belo, o bem e a verdade; Ele detém o poder de criar todas as coisas, e se encarnou para nos inserir nesse mundo Ideal; por isso a encarnação do Verbo se torna uma das doutrina mais fundamentais do Cristianismo.
Após esta lacônica apresentação do Logos no pensamento cristão, podemos pensar em sua ligação com o Platonismo.
Ao observarmos o diálogo de Platão com Timeu, conseguimos ver pontos claros de contato com o Cristianismo. Tem-se essa mesma ideia de um ser celestial que cria todas as coisas visando o bem, do mesmo jeito que a Bíblia diz que o Deus-Trino criou tudo; o pensamento de uma deidade autossuficiente perfeitamente perfeita em suas perfeições e o entendimento de um ser que é o Bem. Tudo isso é comum ao Cristianismo e ao Platonismo, como vemos na citação seguinte:
“Sendo, portanto, a natureza necessária de todas essas coisas, o Demiurgo, do mais belo e bom, assumiu-as naquele tempo entre as coisas geradas quando Ele estava engendrando o Deus autossuficiente e mais perfeito; e suas propriedades inerentes ele usou como causas subservientes, mas Ele mesmo projetou o Bem em tudo o que estava sendo gerado.” «Timeu, 68e». www.perseus.tufts.edu. Consultado em 9 de novembro de 2022
Conclusão
Após a pesquisa e apresentação das informações supracitadas, podemos responder a pergunta estabelecida na introdução do trabalho.
Agora que vimos quatro pontos de contato, muito íntimos, entre Cristianismo e Platonismo, a conclusão que chegamos é que sim, de fato, existe uma relação próxima entre os dois sistemas. Pontos importantes da fé cristã, tem diálogos estreitos com doutrinas elementares platônicas. A doutrina sobre a constituição do homem, sobre a alma, aa visão de um mundo superior e até mesmo a ideia do Logos Criador. Grandes nomes cristãos coadunaram com pontos capitais da filosofia de Platão(428-347A.C.), homens como Agostinho (354-430D.C.), Tomás de Aquino (1225-1274D.C.), Orígenes (185-253D.C.), Clemente (150-217D.C.) e até teólogos modernos como Wayne Grudem(1948 D.C. – atualmente), que, ao defender a ideia antropológica dualista, está discursando em uníssono com todos estes. (Wayne Grudem, 2010)
Sendo assim, torna-se evidente que existe com certeza pontos de contato entre Cristianismo e Platonismo, e que há sem sombra de dúvidas um diálogo amigável entre as partes.
Referências bibliográficas.
- Agostinho. Sobre a Mentira. 1ª reimpressão. Petrópolis: Vozes, 2018.
- Aquino, Tomás de. Suma Contra os Gentios. 2ª edição. Campinas: ECCLESIAE, 2017.
- Champlin, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia & 12ª edição. São Paulo: Hagnos, 2014.
- Cristã, Cultura. Bíblia de Estudo de Genebra. 2ª edição. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
- Grudem, Wayne. Teologia Sistemática, Atual e Exaustiva. 2ª edição. São Paulo: Vida Nova, 2010.
- McGrath, Alister. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica. 1ª edição. São Paulo: SHEED, 2005.
- Platão. O Mito da Caverna. 1ª edição. São Paulo: Edipro, 2015.
- Reale, Giovanni. História da Filosofia, Antiguidade e Idade Média, volume I. 3ª edição. São Paulo: PAULUS, 1990.