No livro A Vida Intelectual, Sertillanges:

É preciso olhar através do espírito para as coisas, e não no espírito. No espírito está aquilo pelo que se vê, mas não aquilo que se vê.

Em meio à miríade de conselhos para a conquista do conhecimento dispostas nessa maravilhosa obra, o padre francês A.-D Sertillanges (1864-1948) volta os olhos de seu leitor para uma verdade que fala diretamente ao “homem espiritual” do apóstolo Paulo (cf. I Co 2). Na busca pelo conhecimento, o estudante é guiado pela literatura, se apaixona pela filosofia, e se ajoelha na teologia. Esse percurso do saber é bem compreendido pelo consumidor de conhecimento, e ao que ainda não calçou as sandálias dos pés e tomou caminho nessa estrada de terra árida, o conselho se torna convite.

A cultura brasileira de que dispomos foi produzida por um homem chamado Augusto Comte. Muitos acólitos correram a servi-lo e arranjar a mesa na qual o Brasil se banqueteou e nossos formadores de opinião deram seu festim. Se um trabalho foi bem aproveitado nesse país, esse trabalho foi o positivismo comtiano. Não apenas as forças armadas se serviram de seu desarmamentismo, nossos pensadores se regalaram em seu humanismo e nossos políticos em seu pragmatismo. Com o filósofo francês, os soldados não precisavam mais atirar, o pensador, buscar, o político, inventar. A violência se tornaria desnecessária, pois não havendo mais armas todos viveriam em paz e os conflitos seriam sempre pequenos, de fácil solução.

A busca pelo incompreensível, ofício de filósofos sempre decepcionados com a expansão de seu não-saber se faria desnecessária, pois o que a teologia e a metafísica não encontraram, poderia ser descartado e apenas o positivo mantido, dissecado e lecionado. A política que tenta inventar novas formas de solucionar problemas sociais não necessitaria mais de criar soluções, bastaria a ela olhar para o que já foi feito com sucesso, e repetir. Uma proposta como essa, que oferece descanso em uma terra de escravidão é o estender da mão divina, e a esse braço forte o brasileiro não titubeou, se agarrou.

O abraço dado no Brasil a todas as soluções fáceis vem do espírito brasileiro, esse jeito todo nosso de ganhar sem suar. Na terra onde se aprende inglês dormindo, emagrece comendo e enriquece sem trabalhar, os vendedores de fórmulas secretas são deuses. E na esteira desse oportunismo cai também o estudante que tenta pegar a mão contrária, mas vê no estudo não o meio mas o fim. O estudar pelo ofício de estudar, como o homem supérfluo dostoievskiano em A Senhoria, que não leva à grandeza, antes derruba o leigo em vícios que, mesmo diante da beatitude se apresentam irresistíveis. Estamos vivendo o momento mais importante da história da República Federativa do Brasil, eis o tempo em que se tornou patente diante de todos as entranhas do poder. No governo do Partido dos Trabalhadores escancarou-se a política brasileira; na Lava-Jato, a corrupção da classe empresarial; no governo Bolsonaro, a lama da política em Brasília; na Pandemia de Coronavírus, a farsa da liberdade. O que faremos disso tudo?

A história nos mostra que, do povo (a classe que sustenta uma nação com o suor, não tendo assim tempo para a organização) não se deve esperar o encontrar da solução, mas o realizar. E definitivamente o Brasil não se encontra nessa etapa. Não se encontra porquê só se pode realizar aquilo que se determinou a ser feito, e essa etapa organizacional é executada pela classe média, aquela que tem tempo para pensar e que, diferente da elite não tem riqueza suficiente para se alienar do “mundo real”. Domenico De Masi, Joseph Pipes e toda a filosofia grega mostra que nossa espécie se dispõe dessa forma: um mundo onde não há tempo senão para trabalhar; outro que se divide entre trabalho e criação; e terceiro que se dedica totalmente à criação — ou ao vício. O Brasil viu o despertar da classe mais pobre, o trabalhador que hoje está trancado em casa, de máscara esperando o lockdown acabar. Esse homem não tem meios de ação, está à espera da liderança e não sairá do lugar por si mesmo a não ser para fazer uma grande besteira. A classe média que poderia ser a burguesia revolucionária, aquela que não tendo tempo nem ímpeto para fazer, pensa e organiza a todos, no Brasil está incapacitada pela própria ignorância. Não tendo se debruçado nunca a consumir informação, a se dedicar no espírito — para utilizar Sertillanges –, hoje teve sua empresa fechada e se viu tão inábil quanto seus funcionários. E nossa classe alta, essa está preocupada em encontrar soluções para comprar vacinas do exterior para vacinar a si, seus filhos e amigos.

O que temos aqui? Temos um cenário apocalíptico onde toda a sociedade, do chão de fábrica aos CEOs, todos estão de joelhos diante de meia-dúzia de políticos semianalfabetos mas cheios de poder estatal. Nem tudo é desgraça, é do homem o sobreviver, e apenas do homem. Nasce no Brasil um grupo de pessoas cientes do mal do pragmatismo, da necessidade da emergência de buscadores do desconhecido, de curiosos que buscam o conhecimento não apalpando, como disse o apóstolo (At 17), mas se esvaziando de tudo o que aprendemos nessa escola decadente da cultura brasileira, e se lançando no espírito para que, n’Ele possa ser encontrado o nosso lugar, o lugar onde o Brasil deveria estar mas do qual se perdeu nessa caminhada republicana. Vivemos, inegável, a fase da organização, não da mudança positiva, mas intelectual. Se algo pôde ser aproveitado desse breve vislumbre de “Novo Brasil”, é que nós precisamos ter uma intelectualidade, e essa inteligência deve ser cultivada em pequenos grupos de pessoas dedicadas a buscar o Conhecimento, para que na próxima vez que a Providência nos abrir uma oportunidade, nós saibamos aproveitá-la e transformar esse pobre país em uma nação grande, forte e livre.

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